domingo, 31 de março de 2013

The Bride



a última vez que nos víamos: cada gesto, cada momento. ela voltou-se de novo para mim e olhámo-nos com a força de, por um instante, sermos capazes de acreditar que nenhum deus seria capaz de separar-nos. logo a seguir, numa certeza que se espetou contra nós, muito maior do que um instante, soubemos que iríamos separar-nos mesmo. era a última vez que nos víamos. tudo era último. ela caiu-me dentro dos braços. apertei o seu tronco, esmaguei-o. pousámos as cabeças nos ombros um do outro: as faces a tocarem-se: lágrimas quentes. passou tempo. afastámo-nos para nos vermos. partilhámos um olhar. e os nossos corpos. e a luz branca sobre nós. (...) não tínhamos palavras. tínhamos silêncio. tínhamos as nossas respirações e aquilo que víamos, subitamente real. tínhamos o tempo a trazer-nos de novo a verdade e a tristeza. ela não se levantou, não caminhou nua, não se sentou ao piano. continuou deitada, sem forças, sem vida: o olhar desfeito. eu levantei-me. vesti-me devagar. as roupas não saravam as feridas do meu corpo rasgado. a última vez que nos víamos. caminhei para a porta do salão, deixando-a deitada sobre o tapete, sem olhar para trás. (...) o rosto dela acreditou que ia voltar, ia dar os passos de volta até aos seus braços, até ao seu corpo nu e abandonado. não voltei. (...)

'cemitério de pianos'- José Luís Peixoto